A liberdade é um dos temas mais recorrentes em debates políticos, sociais e culturais. Mas o que acontece quando tentamos discuti-la como um problema filosófico puro? Essa é justamente a proposta de Roger Scruton no capítulo sobre liberdade de seu Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes.
Diferente das polêmicas sobre “liberdade de expressão”, “liberalismo econômico” ou “direitos civis”, aqui o foco é anterior: a própria existência da liberdade enquanto capacidade humana real de escolher — o que chamamos de livre-arbítrio.
O problema filosófico da liberdade
Para entendermos a complexidade do tema, é preciso sair das simplificações e observar o que, de fato, está em jogo. Ser livre, no sentido filosófico, é possuir autodeterminação: a capacidade de deliberar, escolher e agir com responsabilidade sobre as próprias decisões.
Essa deliberação envolve o que Aristóteles já chamava de escolha racional — você pondera, julga e decide entre alternativas possíveis. Algo simples como escolher a cor de uma camiseta já exige deliberação interna, ainda que não percebamos.
Porém, a liberdade sempre vem acompanhada de responsabilidade. E é exatamente isso que a diferencia de mero impulso ou acaso.
Responsabilidade, culpa e moralidade
Scruton ilustra isso com um exemplo simples:
Imagine que alguém te pede para cuidar de uma criança por uma noite. Você tem liberdade de aceitar ou recusar. Se aceita, é responsável pelo que acontece.
- Se cuida bem, agiu livre e responsavelmente.
- Se se embebeda e a criança sofre um acidente, sua liberdade continua real, mas mal exercida — e você é culpável.
- Se sai para salvar o vizinho em um incêndio e a criança se machuca durante sua ausência, sua responsabilidade será julgada de modo distinto — pois as circunstâncias atenuam a culpa.
A liberdade, portanto, está sempre ligada a juízo moral e intenção. A ação não é isolada: ela carrega consequências e sentido.
O desafio materialista: como explicar a liberdade?
A grande dificuldade surge quando tentamos explicar a liberdade num mundo descrito apenas por leis físicas e biológicas — ou seja, no materialismo moderno.
Se tudo é matéria, e toda matéria segue leis necessárias e cegas, como surge algo como uma escolha livre? Como um punhado de átomos gera deliberação? Como um cérebro puramente físico pode decidir algo?
É aqui que a filosofia fica interessante: o materialismo não consegue explicar adequadamente a liberdade. Muitas vezes, a resposta dos materialistas é simplesmente: “Bom, estamos aqui, então a liberdade deve ter surgido de alguma forma”. Um raciocínio circular e intelectualmente pobre.
No fundo, o livre-arbítrio só pode ser defendido com coerência se admitirmos que o ser humano participa de uma realidade transcendental. Ou seja: que há algo além da matéria pura em nossa constituição — uma alma, um espírito, um sujeito racional imaterial.
Kant e a tentativa moderna de salvar a liberdade
É aqui que entra uma das contribuições centrais de Scruton: o resgate da reflexão de Immanuel Kant.
Kant percebeu que, se quisermos manter a liberdade real, precisamos conceber o ser humano não apenas como objeto (corpo, matéria, impulsos), mas também como sujeito transcendental — alguém capaz de se submeter livremente às leis da razão.
Para Kant, o sujeito:
- Não é regido apenas por leis naturais (como pedras e animais);
- Reconhece e escolhe livremente as leis morais;
- Participa de um nível de realidade superior à mera física.
Sem essa dimensão transcendental, restaria apenas o determinismo. Com ela, a liberdade volta a ser inteligível.
Ser livre não é “fazer o que quiser”
Scruton também aponta um equívoco comum: confundir liberdade com ausência de limites. A verdadeira liberdade envolve a capacidade de escolher o bem, de assumir compromissos, de deliberar com responsabilidade.
Essa liberdade distingue o homem de todas as outras criaturas e está na base de toda a moralidade. Só alguém capaz de escolher é capaz de agir moralmente.
Um objeto não escolhe. Um sujeito escolhe.
A tensão central: ser sujeito ou ser objeto
O problema da liberdade, portanto, se insere num dilema ainda maior da filosofia moderna: a distinção entre sujeito e objeto.
- Se o ser humano for apenas objeto, ele está submetido aos fluxos cegos da matéria e da necessidade.
- Se for sujeito, há uma abertura para o transcendente, para a moral, para o sentido, e, no fim, para Deus.
A liberdade é o grande divisor de águas entre esses dois caminhos.
E como Scruton aponta — amparado por Kant —: A liberdade só se sustenta se reconhecermos que o ser humano não é apenas um corpo entre corpos, mas participa de algo que o ultrapassa.
No próximo artigo: moral
Na sequência da série, a próxima aula tratará do tema da moralidade, aprofundando justamente essas implicações práticas da liberdade.
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