Quando falamos em moralidade, muita gente imagina logo listas de regras: pode isso, não pode aquilo. Mas o problema filosófico da moralidade vai muito além. Não se trata apenas de definir o que é certo ou errado em cada situação, mas de compreender por que somos capazes de distinguir o certo do errado.
Com a ajuda de Roger Scruton, no livro Guia de Filosofia para Pessoas Inteligentes, vamos mergulhar nessa discussão crucial e entender por que a moralidade está no centro da própria filosofia — e por que, sem liberdade, ela simplesmente não existe.
Sem liberdade, não há moral
Toda moralidade pressupõe uma coisa: liberdade. Não se pode falar em certo ou errado se o agente não tiver escolha real sobre suas ações.
Um leão que devora uma zebra não é “moralmente errado” — ele está apenas obedecendo aos seus instintos naturais. Não há deliberação, não há escolha. Apenas necessidade biológica. Nós, humanos, somos diferentes: deliberamos. Escolhemos. Assumimos responsabilidade.
Sem essa liberdade, não há base para culpa, para julgamento moral, para justiça.
A ponte entre sujeito e objeto
Como vimos nos capítulos anteriores (e Scruton insiste ao longo de toda sua obra), a filosofia moderna abriu um abismo entre o sujeito e o objeto. Nós nos tornamos observadores conscientes do mundo, mas ao mesmo tempo, sujeitos inseridos nele.
A liberdade seria o elo vertical que nos conecta a uma dimensão transcendente — algo além do mero funcionamento causal da matéria.Se o homem fosse apenas um amontoado de moléculas e reações químicas, como explicar a liberdade real de escolha?
Aqui está o dilema que o naturalismo e o materialismo não conseguem resolver sem cair no puro determinismo.
Kant e o nascimento da ética racional
Para tentar resolver essa questão, Kant propõe a lei moral universal:
“Aja segundo a máxima que você possa desejar que se torne uma lei universal.”
Esse é o famoso imperativo categórico. Ou seja: se a sua ação não puder ser universalizada para todos os seres humanos, ela não é moral.
Exemplo clássico? A mentira. Mesmo que possa trazer vantagens pontuais, a mentira não pode ser universalizada — se todos mentirem, a confiança entre os homens se dissolve.
Por isso, para Kant, não importa o resultado da ação (como pensaria o utilitarismo), mas a coerência racional e universal do ato.
O famoso dilema do porão
Mas e situações-limite? O próprio Kant é desafiado no famoso experimento mental: durante a Segunda Guerra, um oficial nazista bate à sua porta perguntando se você esconde judeus em casa. Mentir para salvar vidas seria imoral?
O kantiano diria: sim, seria imoral — mas o problema não está em Kant. O problema está no soldado que viola a lei moral universal ao buscar o homicídio. Se todos obedecessem à lei moral, essa situação não existiria. O sistema kantiano exige uma comunidade de seres racionais que compartilhem os mesmos princípios.
Por isso as comunidades importam (e muito)
E aqui está um ponto fundamental de Scruton: a moral não existe no vácuo. Ela depende de laços sociais, de uma cultura que compartilhe valores básicos.Se a comunidade não tem um solo comum de virtudes, a aplicação da lei moral vira caos — como vemos nos experimentos multiculturais fracassados em partes da Europa.
Sem virtudes compartilhadas, a própria civilização vira um castelo de cartas.
Moralidade exige virtudes
Mesmo com a lei moral posta, não basta teoria abstrata. O cultivo constante das virtudes e o combate aos vícios é o que torna a moralidade praticável no dia a dia.
Aqui, Aristóteles ainda é insuperável: só o homem virtuoso consegue aplicar a lei moral com sabedoria. Sem virtudes, a ética vira um discurso vazio — ou, pior ainda, hipocrisia pura.
Os princípios universais da moralidade segundo Scruton
Na página 111, Scruton resume assim os fundamentos da moral:
- Igualdade moral: o que vale para mim, vale para você.
- Direitos devem ser respeitados.
- Deveres devem ser cumpridos.
- Acordos devem ser honrados.
- Disputas devem ser resolvidas por argumentos, não pela força.
- Quem viola os direitos alheios perde os seus próprios.
Parece simples. Mas manter isso de pé exige uma comunidade inteira empenhada — e permanentemente educada para as virtudes.
Kant: a lei moral dentro de mim
Talvez ninguém tenha resumido melhor o peso da moralidade do que o próprio Kant:
“O céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.”
Não é uma convenção social. Não é um acordo arbitrário.
A moralidade, para Kant, é tão objetiva quanto o cosmos.
Conclusão
Sem liberdade verdadeira, a moralidade se torna um teatro de ilusão.
Sem virtudes e comunidade, ela se torna impraticável.
E sem razão, ela se dissolve no caos.
O desafio proposto por Scruton (e por toda a tradição filosófica) permanece:
como sustentar a civilização quando o castelo de cartas começa a balançar?
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